terça-feira, março 13, 2007
[0.323/2007] Auto
Entra Mofina Mendes, e diz Paio Vaz:
Onde deixas a boiada e as vacas, Mofina Mendes? Mofina Mas, que cuidado vós tendes de me pagar a soldada que há tanto que me retendes? Paio Vaz Mofina, dá-me conta tu onde fica o gado meu. Mofina A boiada não vi eu, andam lá não sei por u, nem sei que pacigo é o seu. Nem as cabras não nas vi, samicas cos arvoredos; mas não sei a quem ouvi que andavam elas por i saltando pelos penedos. Paio Vaz Dá-me conta rês e rês, pois pedes todo teu frete. Mofina Das vacas morreram sete, e dos bois morreram três. Paio Vaz Que conta de negregura! Que tais andam os meus porcos? Mofina Dos porcos os mais são mortos de magreira e má ventura. Paio Vaz E as minhas trinta vitelas das vacas, que te entregaram? Mofina Creio que i ficaram delas, porque os lobos dizimaram, e deu ôlho mau por elas, que mui poucas escaparam. Paio Vaz Dize-me, e dos cabritinhos que recado me dás tu? Mofina Eram tenros e gordinhos, e a zorra tinha filhinhos e levou-os um e um. Paio Vaz Essa zorra, essa malina, se lhe correras trigosa, não fizera essa chacina, porque mais corre a Mofina vinte vêzes que a raposa. Mofina Meu amo, já tenho dada a conta do vosso gado muito bem, com bom recado; pagai-me minha soldada, como temos concertado. Paio Vaz Os carneiros que ficaram, e as cabras, que se fizeram? Mofina As ovelhas reganharam, as cabras engafeceram, os carneiros se afogram, e os rafeiros morreram. Pessival Paio Vaz, se queres gado, dá ao demo essa pastôra: paga-lhe o seu, vá-se embora ou má-hora, e põe o teu em recado. Paio Vaz Pois Deus quer que pague e peite tão daninha pegureira, em pago desta canseira toma êste pote de azeite e vai-o vender à feira; e quiçais medrarás tu o que eu contigo não posso. Mofina Vou-me à feira de Trancoso logo, nome de Jesu, e farei dinheiro grosso. Do que êste azeite render comprarei ovos de pata, que é a coisa mais barata que eu de lá posso trazer; e êstes ovos chocarão; cada ovo dará um pato, e cada pato um tostão, que passará de um milhão e meio, a vender barato. Casarei rica e honrada por êstes ovos de pata, e o dia que fôr casada sairei ataviada com um brial de escarlata, e diante o desposado, que me estará namorando: virei de dentro bailando assim dest'arte bailado, esta cantiga cantando. Estas cousas diz Mofina Mendes com o pote de azeite à cabeça e, andando enlevada no baile, cai-lhe, e diz: Paio Vaz Agora posso eu dizer, e jurar, e apostar, que és Mofina Mendes tôda. Pessival E s'ela bailava na boda, qu'está ainda por sonhar, e os patos por nascer, e o azeite por vender, e o noivo por achar, e a Mofina a bailar; que menos podia ser? Vai-se Mofina Mendes, cantando. Mofina Por mais que a dita me enjeite, pastôres, não me deis guerra; que todo o humano deleite, como o meu pote de azeite, há-de dar consigo em terra?
(Auto de Mofina Mendes - Gil Vicente) LNTEtiquetas: Literatura, lnt, Lusofonia
1:43:00 da manhã
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